Camponeses de Moçambique “cultivam” carbono para os poluidores
Camponês cuida de floresta em Nhambita - Foto: Africa News |
A produção alimentar e a soberania dos povos africanos correm o risco de
estar seriamente comprometidas devido a implementação de projetos de
plantio e conservação de árvores para a captura de carbono e a chamada
Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal Plus
(REDD+). Tais projetos poderão conduzir o continente a graves situações
de insegurança alimentar e resultar na perda da posse de terra e do
controle de recursos florestais por parte de camponeses de África.
Em Moçambique, esse cenário não vai demorar a se concretizar, uma vez
que o país ofereceu seu território para servir de “modelo” para projetos
de captura de carbono e para a REDD +.
Ao cair da tarde, Albertina Francisco*, camponesa da comunidade de
Nhambita, na província de Sofala, em Moçambique, regressa à sua casa,
cansada, depois de mais um dia de atividade em sua machamba [palavra
usada em Moçambique para dizer roça]. Além de tomar conta do milho,
mapira (uma espécie de sorgo) e mandioca que cultiva, Albertina passou a
ter uma tarefa a mais: cuidar das árvores que plantou há alguns anos
atrás para garantir que no final do ano não seja penalizada pela
Envirotrade, a empresa com a qual tem um contrato de provisão de
carbono. É que Albertina deve, por obrigação, evitar a morte das plantas
e garantir um bom desenvolvimento delas de modo que, pelo menos 85%
sobrevivam.
“Além do milho e da mapira, agora tenho também que ver as árvores, para
não morrerem. Plantei muitas árvores e não é fácil controlar todas”,
disse Albertina que visita a sua roça duas vezes ao dia.
Como Albertina, outros 1.400 camponeses de Nhambita e outras comunidades
do posto administrativo de Púngue, em Sofala, foram contratados para
plantar e cuidar de árvores em suas terras. “Quando chegaram, disseram
que o projeto era bom, porque ao plantar as árvores receberíamos
dinheiro para combater a pobreza e seríamos donos [das árvores] mesmo
depois do projeto terminar”, conta um camponês de Nhambita.
O projeto chama-se “Nhambita Community Carbon Project”. O objetivo da
Envirotrade é capturar carbono a partir do agroflorestamento,
comercializar os créditos de carbono no mercado voluntário - neste
momento, Europa e Estados Unidos. Comprando créditos de carbono, as
empresas de países industrializados podem “vender” uma boa imagem aos
seus clientes, limpar sua consciência e continuar a contaminação do
planeta. Com a implementação do REDD+ e a compra dos créditos de carbono
pretende-se que países ricos continuem a emitir gases do efeito estufa,
desde que financiem projetos de captura de carbono em outros lugares,
geralmente em países do sul.
Supervisor técnico da Envirotrade mostra área protegida
Foto: Africa News
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Com esse projeto, a Envirotrade diz estar também contribuindo para diminuir a pobreza das populações.
Para além do uso de terras para o plantio de árvores (gliricidia,
faidherbia, cajueiros, mangueiras, espécies madeireiras), as comunidades
são igualmente chamadas a proteger e patrulhar uma demarcada área de
pouco mais de 10 mil hectares, dos quais a Envirotrade também
comercializa créditos de carbono através do mecanismo REDD+.
Os serviços de plantio, conservação e proteção das florestas são regidos
por um contrato entre a Envirotrade e os camponeses. O contrato é por
tempo determinado e tem a duração de apenas sete anos. Contudo, de
acordo com as cláusulas do contrato, o produtor [camponês] tem a
obrigação de plantar e cuidar das árvores e receberá um valor anual que
varia em função do sistema escolhido e da extensão da terra usada. Após
sete anos o pagamento cessa, mas a obrigação de cuidar permanece. “É
obrigação do camponês continuar a cuidar das plantas que lhe pertencem,
mesmo depois dos sete anos da vigência deste contrato”, determina uma
das alíneas da cláusula sobre as obrigações do produtor.
De acordo com a Envirotrade, uma árvore captura carbono por um período
de entre 50 a 100 anos. A obrigação de cuidar das plantas e florestas
pelos camponeses passa, automaticamente, a ser multigeracional. “Se um
camponês perde a vida dentro do período de vigência do contrato, este
passa para os legítimos/legais herdeiros [filhos] com todos os direitos,
mas também obrigações”, esclarece António Serra, Diretor Nacional da
Envirotrade.
Destaque-se que os contratos que regem a atividade não trazem capítulo sobre direitos dos camponeses.
Apoio da Comissão Europeia ao projeto da Envirotrade
Foto: Africa News
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Nhambita é uma comunidade do distrito de Gorongosa, no posto
administrativo de Púngue, centro de Moçambique. É rico em biodiversidade
e ostenta uma vegetação e riqueza florestal de se cobiçar. A Comissão
Europeia financiou a Envirotrade do início do projeto, em 2003, até 2008
com cerca de 1500 mil euros para atividades de pesquisa e
experimentação em Nhambita. A Comissão Europeia cortou o financiamento e
uma das razões foi por ter constatado irregularidades na metodologia
proposta para a medição do carbono.
O que o camponês ganha no negócio
De acordo com a Envirotrade, os seus projetos têm por objetivo aliviar a
pobreza das comunidades, proporcionar desenvolvimento sustentável e
conservar a biodiversidade. “É uma nova forma de fazer negócio”, afirma a
empresa no seu website, que acredita oferecer um novo modo de vida para
indivíduos e comunidades.
Um contrato de um camponês que tivemos acesso estabelece que, a título
de prestação de serviço, ele faça o plantio de árvores numa área total
de 0,22 hectares (22 metros por 22), no seu quintal, para receber um
valor total de 3.215 meticais [moeda oficial de Moçambique], o que
corresponde a 128 dólares, para os sete anos de duração do contrato.
Para ganhar dinheiro suficiente e aliviar a pobreza, este camponês
precisaria de muito mais hectares, diversificação de sistemas e plantar
muito mais árvores. O que se verifica praticamente impossível.
O sistema mais pago pela Envirotrade denomina-se “plantação florestal” e
pode pagar ao produtor cerca de 17.500 Meticais ( 670 dólares)
divididos por sete anos.
Estes valores são referentes a um hectare, ou seja, o valor pode ser
mais alto ou mais baixo dependendo do tamanho da área. Os camponeses em
Nhambita têm uma área média de um hectare por família. “Um camponês que
tenha 1 hectare pode, em um ano, assinar um contrato com o sistema de
bordadura válido por sete anos, no ano seguinte, na mesma área, assinar
um contrato de coassociação para sete anos e, no terceiro, assinar um
contrato de sete anos para o sistema de quintal. Assim, esse produtor
ficará ligado ao projeto por muito tempo”, explicou Antônio Serra,
Diretor Nacional da Envirotrade em Moçambique.
Mas não se engane quem pensar que com REDD+ e o plantio de árvores vai
ficar rico: “O negócio de carbono não é para tornar ninguém (camponeses)
rico. O próprio mercado mostra que tem muitos custos. Não vai tornar as
comunidades ricas. As pessoas precisam ter outras formas de
rendimento”, disse em entrevista Aristides Muhate, gestor de carbono da
Envirotrade. A empresa parou de emitir novos contratos há três anos,
devido a problemas financeiros.
Soberania alimentar em perigo
É importante destacar que a dedicação por esses serviços poderá aumentar
a insegurança alimentar da comunidade e das famílias, se olharmos para o
tempo e a dimensão da área que o camponês precisa para plantar uma
quantidade de árvores que lhe possibilite ganhar mais dinheiro. Isso
levará o camponês a “cultivar carbono” no lugar de culturas alimentares.
Por outro lado, “o enfoque nos valores econômicos da conservação das
florestas comunitárias, promovida pela Envirotrade, poderá tornar os
valores culturais, espirituais e biológicos menos importantes, uma vez
que as comunidades sempre souberam conservar as florestas por gerações e
gerações”, diz um estudo de Jovanka Spiric, que investigou os impactos
socioeconômicos do esquema REDD implementado em Nhambita.
Existe um número considerável de camponeses que abandonaram a roça e se
dedicam em tempo integral ao aceiro e patrulha as florestas da área
REDD+.
Gabriel Langa*, pai de quatro filhos e com duas esposas, é chefe do
grupo que aceira e patrulha o bloco dois, uma área de REDD+ “protegida”
na zona de Bué Maria, em Púngue. Antes cultivava para alimentar a
família.
“Agora a atividade principal é o aceiro. Não tenho tempo para ir à machamba”, disse Langa.
Langa vai ganhar 8.845 Meticais (340 dólares) pela fase do aceiro da
área “conservada” e dividi-los pelo o grupo (de quatro membros) que
chefia.
As florestas nunca estiveram em risco de desaparecer...
Para a Envirotrade, a zona tampão do parque Nacional de Gorongosa], onde
se encontra a comunidade de Nhambita, estava em risco de desaparecer
devido ao abate massivo de árvores para carvão e queimadas
descontroladas.
O comitê de Gestão dos Recursos Naturais da localidade de Púngue, que
funciona a partir de Nhambita, em Gorongosa, estabelecido antes da
chegada da Envirotrade, junto com os líderes comunitários, desmente essa
teoria e afirma que sempre soube cuidar e conservar as florestas e a
terra na localidade.
“A comunidade não tinha nenhum problema e sempre soube gerir os
recursos. O estabelecimento do Comitê de Gestão, em 2011, veio a
reforçar essa capacidade, porque tivemos treinamento para isso”, diz
Francisco Samajo, presidente do referido comitê, que acrescenta que
“isso é o que provavelmente trouxe a Envirotrade para cá”.
Aristides Muhate, da Envirotrade, reage: “Às vezes, as pessoas querem
impor o seu mérito acima de tudo. Todo mundo sabe que essa zona seria
hoje de licenciamento para corte ilegal de madeira. Ele [o chefe do
comitê de gestão dos recursos] não teria dinheiro para fazer o
patrulhamento que ele faz”.
A Envirotrade financia o comitê de gestão dos recursos naturais para
esta, por sua vez, pagar fiscais para patrulhar as florestas e
“defendê-las” contra membros da mesma comunidade.
Embora os camponeses afirmem ter benefícios de alguma forma com o
projeto da Envirotrade (árvores de fruta, algum dinheiro anualmente,
posto de saúde, transporte em caso de doença), parece não haver consenso
em admitir que as comunidades eram muito pobres e que a gestão de suas
florestas e terras era deficiente.
Outro camponês de Nhambita, Raimundo Eduardo, afirmou que nunca se
considerou pobre, porque, segundo ele “tenho machamba e sempre
trabalhei”.
Abandono do plantio de árvores: nem todos consideram a atividade divertida
Juvenal Francisco, 31, camponês de Nhambita, abandonou o plantio de
árvores em 2010 por considerar os serviços sem rendimento. “Parece que
eu só trabalhava para eles e não via benefícios para mim”, conta
Francisco, que por iniciativa própria dirigiu-se à Envirotrade para
manifestar interesse de abandonar a atividade.
O que desmotivou Francisco a rescindir o contrato foi o fato de, a
partir do quarto ano, não ter sido pago o valor anual estipulado, por
supostamente não ter cuidado devidamente das plantas como a Envirotrade
determinou. Juvenal Francisco considera que houve falta de satisfação de
uma das obrigações com que a Envirotrade se comprometeu : a de
pagar-lhe durante sete anos. “A partir do quarto ano não me pagaram mais
e nunca me explicaram o porquê”, disse.
Juvenal conta que tinha plantado mais de 900 unidades de plantas
madeireiras e de fruta desde 2007. Agora, dedica o seu tempo para
produzir milho, batata doce, mapira e mandioca.
Este tem sido um grande conflito entre a Envirotrade e muitos
camponeses. Um elevado número de “contratados” é descontado por não
atingir os 85% da taxa de sobrevivência determinada no contrato. A nossa
equipe de reportagem também constatou que, nos últimos três anos,
tem-se verificado atrasos nos pagamentos dos serviços ambientais, devido
a problemas financeiros.
Camponeses não sabem o que estão fazendo
As comunidades de Nhambita desconhecem o conceito REDD+ e, apesar de
alguns camponeses saberem que plantam árvores e conservam as florestas
“para vender carbono”, demonstram desconhecer o conceito e os seus
mecanismos em sua profundidade.
O Gestor Nacional de Carbono dos projetos da Envirotrade, o engenheiro
florestal Aristides Muhate, justifica este fato nos seguintes termos:
“há diferentes níveis de informação. Não temos porque perder tempo
explicando esses conceitos complicados para os camponeses”. Aristides
faz a declaração baseando-se nos baixos níveis de escolarização que a
maioria da população de Nhambita e arredores possui.
No entanto, isso pode ser considerado uma violação do direito à
informação prévia e ao consentimento livre antes do início das
atividades em sua terra. “Sabemos que o rendimento de plantar árvores
vem do carbono. No fundo eu não sei mais nada sobre isso”, confessou
Elias Manesa, da comunidade de Mutabamba, que mostrou não compreender o
que é carbono.
O não fornecimento de toda informação sobre o negócio de carbono da
Envirotrade com os recursos da comunidade coloca em xeque os níveis de
transparência no processo. A fraca ou inexistente compreensão dos
conceitos ligados à REDD+ e aos mercados de carbono por parte dos
camponeses faz com que eles disponibilizem os seus recursos e se
envolvam em um negócio sem saber as suas implicações: permitir que
poluidores do norte continuem com as emissões de carbono na atmosfera, o
que coloca em risco o bem estar dos mesmos camponeses, se levar em
conta que essas emissões trarão impactos negativos em Moçambique, como a
seca e inundações.
Uma mulher camponesa que não tem contrato pessoal com a Envirotrade, mas
plantou e cuida das árvores porque seu parceiro decidiu por ambos
fazê-lo, também mostra desconhecer a finalidade da atividade.“Só sei que
meu marido recebe dinheiro [anualmente] por causa das árvores que
plantamos. Não sei de mais detalhes”, contou. De fato, mais da metade
dos contratados pela Envirotrade são do sexo masculino. Poucas mulheres
detêm posse de terra em Moçambique, embora seja a camada que mais
esforço empreende na atividade de produção alimentar e em outros
trabalhos com a terra.
Eminente conflito social
Começam a se instalar sinais de conflitos sociais relacionados com os
Pagamentos dos Serviços Ambientais (PSA) entre os membros da comunidade
de Nhambita. No futuro o cenário poderá vir a piorar.
Camponeses que não estão contemplados nos PSA manifestam uma espécie de ressentimento por não receber o dinheiro da Envirotrade.
Em outros projetos REDD, em países como Indonésia, os pagamentos por
serviços ambientais criam desigualdades devido à diferença na renda e
isso tende a criar divisões na comunidade e a comprometer a unidade
organizativa, social e cultural.
Por exemplo, o jornal francês Le Monde Diplomatique publicou
recentemente um caso de expulsão de camponeses devido à implementação de
REDD no México.
Jossias Jairosse é recém-chegado em Nhambita e trabalha na carpintaria
comunitária na sua localidade. Quando se instalou na comunidade, a
Envirotrade tinha parado com as contratações. Sente-se ressentido e
inferior em relação aos demais vizinhos, uma vez que possuem uma renda
anual que ele não tem nenhuma possibilidade de obter.
Território moçambicano cobiçado por outros para REDD+
Cerca de 15 milhões de hectares [19% do território nacional] estão sendo
pretendidos por uma companhia de capital britânico para REDD+. Os casos
de usurpação de terras relacionados com a Redução de Emissões por
Desmatamento e Degradação Florestal poderão acrescer esta cifra se
incluirmos produção de agrocombustíveis e plantações de monoculturas
diversas, porque podem converter-se também em REDD+, já que inclui
cultivos e solos para os bônus de carbono, e não somente florestas.
Segundo o inventário florestal nacional de 2008, cerca de 70% do país
(54,8 milhões de hectares) é predominantemente coberto de florestas e
outras formações lenhosas. Essas áreas correm o risco de ser usadas
para a captura de carbono.
Moçambique encontra-se em posição de privilégio entre os países mais
“cobiçados” para a implementação dos chamados projetos de
desenvolvimento, com investimento estrangeiro, na África. Por exemplo, o
Banco Mundial considera Moçambique como um destino certo para projetos
de REDD, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo e Agricultura Industrial.
Empresas do norte têm adquirido terras em Moçambique para a produção,
exportação, agrocombustíveis e, agora, REDD+. Atualmente, até os
chamados países emergentes, a Índia e o Brasil, estão adquirindo terra
para o agronegócio e extração mineral.
Na maioria desses casos, comunidades locais, em particular camponeses e
populações indígenas, são fortemente afetados e muitos dos seus direitos
são violados. Para o caso do REDD+, há um eminente risco de camponeses
servirem de empregados a companhias que vão usar recursos florestais e
os solos locais para recorrer aos créditos de carbono internacionalmente
e maximizar seus lucros, sem necessariamente contribuir para eliminar a
pobreza das comunidades.
Na Uganda, 22 mil camponeses foram desalojados de suas terras por conta
de um projeto de compensação de carbono florestal em 2011.
Fonte: Brasil de Fato
Imagem: Google
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