22 de Outubro, 2011
Sem dúvida acaba de nascer, com a intervenção externa na Líbia, um novo conceito: o da democracia forçada. A história e a tradição não importam, quando os interesses em jogo ultrapassam as fronteiras do país. Na Líbia nunca houve partidos políticos ou tradições democráticas. Agora, pela força, os líbios terão direito a uma democracia, não necessariamente à sua democracia. O politicamente correcto seria dar as boas vindas à mudança de regime na Líbia e à abertura do caminho para uma democracia que, claro está, será do “tipo ocidental”. Seria, mas ninguém garante que os líbios quisessem, ou queiram, o politicamente correcto. Podem querer uma mudança, até de regime, mas depois de a poeira assentar, será que querem mesmo o regime que lhes está a ser imposto do exterior a pagar o preço dessa “ajuda”? O nóvel sistema político começou mal com o linchamento do coronel Kadhafi pela populaça, num tom de ajuste de contas. Pior, o presidente do autoproclamado Conselho Nacional de Transição (CNT) afirmou que o destituído e falecido presidente havia sido “capturado e estava a ser transportado, ferido, para um hospital, quando a viatura foi apanhada em fogo cruzado”. As câmaras dos telemóveis filmaram e as televisões difundiram algo bem diferente: a populaça a agredir violentamente um Kadhafi ensanguentado. Ou o CNT está mal informado ou o seu presidente mentiu. O que pouco importou. Alguns relatos convergem numa descrição. O coronel Muammar Kadhafi seguia numa coluna que retirava de Sirte que foi atingida por um ataque aéreo de “drones” norte-americanos e da aviação francesa. Uma versão desmentida pelo CNT, mas admitida por altos funcionários da OTAN, citados pelo “The Washington Post”, que adiantavam “não ser claro” se os ataques aéreos haviam ou não atingido a coluna em que seguia o dirigente deposto. Seja como for, o afastamento de Kadhafi não teria sido conseguido se a França e a Grã-bretanha, com o apoio dos Estados Unidos da América, não tivessem dado cobertura aérea e mesmo apoio técnico no terreno aos grupos revoltosos. Já escrevi mais de uma vez que considero grave que uma Resolução do Conselho de Segurança da ONU possa ser usada de forma desvirtuada e interpretada na visão do mais forte, para depor um governo, seja ele qual for, reconhecido pelas Nações Unidas. Foi isso que sucedeu com a Resolução 1973. Foi isso o que sucedeu na Líbia. A questão de fundo é a ingerência num Estado soberano onde possa ou não haver um conflito interno. Uma coisa é a intervenção em defesa de civis, como sucedeu, por exemplo, no Kosovo (nenhum governo foi derrubado militarmente), outra é tomar partido militarmente por um grupo insurrecto. Nem está em causa a legitimidade da insurreição. Está em causa o princípio. Nada é menos claro que o futuro da Líbia, como é nebuloso o futuro na Tunísia, que domingo tem eleições, e há ainda a previsão no Egipto. A chamada “Primavera Árabe” parece ser uma realidade do aquecimento global: ninguém sabe onde vai parar. A Líbia junta-se agora à Tunísia e ao Egipto na procura de uma solução política para o futuro. Se na Líbia existe uma melhor perspectiva económica, o horizonte político é bem mais complicado. As multinacionais petrolíferas têm o caminho aberto, em especial as francesas e inglesas, que se preparam para dar um “chega para lá” aos italianos. E o governo provisório, que supostamente se seguirá ao CNT, não tem muitas escolhas se quer pôr em funcionamento, com alguma brevidade, a produção petrolífera do país, sem a qual não existem meios de financiamento do que é necessário reconstruir e para a manutenção dos benefícios sociais existentes. Ao lado, a Tunísia e o Egipto estão a braços não só com a crise política (mais o Egipto que a Tunísia), como com a situação financeira. Não há ajudas dos Estados Unidos da América nem da União Europeia. O FMI aponta o caminho das privatizações, da liberalização, da redução do peso do Estado. Financiamentos só surgem do Banco Europeu de Investimento (BEI) e do Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento (BERD). O G-8, na sua reunião de 26 e 27 de Maio deste ano, prometeu uma ajuda: a que já estava programada antes das revoluções. Os restantes países árabes nem querem ouvir falar em ajudas econômicas. A Líbia tem, ou poderá ter, um problema menor do ponto de vista financeiro. Outra coisa completamente diferente será o panorama e a estrutura política futura. Ainda Kadhafi estava vivo e Sirte sob cerco, e continuavam as divergências tribais no seio do CNT. Para já são conhecidos os receios dos restantes grupos de que a formação de um governo de transição em Benghazi privilegie esta cidade em seu prejuízo. A localização estratégica da Líbia no Sul do Mediterrâneo será uma tentação para o estabelecimento de bases militares estrangeiras (como sucedeu antes de Kadhafi) e o CNT ou o governo de transição têm uma dívida a pagar. Acresce a possibilidade de uma eventual supremacia estrangeira no sector petrolífero. Qualquer destes factores pode não facilitar a estabilidade. A Europa tem um problema no seu quintal.
Fonte: jornaldeangola
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