Apoio duvidoso
Um leitor desavisado do documento poderia ter a impressão de que o velho sonho de consumo da elite política e diplomática brasileira, um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), estaria a ponto de fazer-se realidade. Logo de início, o texto afirma:
«A Força-Tarefa recomenda que o governo Obama endosse plenamente o Brasil como um membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A Força-Tarefa incentiva o governo a considerar as importantes dimensões regionais, multilaterais e de governança global de um tal passo, na medida em que engaje o Brasil em um intenso diálogo sobre este assunto.»
Puxando o saco do Brasil…
O relatório também ressalta o papel de Brasil como “ator global”, em função da importância da economia brasileira, especialmente, em função do crescimento populacional, seu enorme potencial de recursos naturais, especialmente na área energética – hídrica, petrolífera e nuclear – potencial de produção alimentícia e papel emergente no assuntos da ordem mundial, com ênfase em sua projeção frente à África.
Segundo o texto, «devido às massas terrestres, economias, populações e base de recursos de ambos os países, o Brasil e os EUA interagem, necessariamente, em um mundo crescentemente globalizado e multipolar».
Amigos da onça
Entretanto, antes de se aprofundar a análise do contexto estratégico em que se inscreve o relatório do CFR, deve-se destacar que a proposta da inclusão do Brasil no clube dos membros permanentes do CSNU, não é apenas um reconhecimento objetivo da importância global do País, mas tem embutida uma intenção manifesta de cooptá-lo para um projeto de reestruturação do poder mundial em que permanecem intocados os axiomas fundamentais do atual sistema global. Por exemplo, o documento sequer menciona a crise do sistema financeiro e bancário internacional, que tem sido a base da hegemonia anglo-americana no cenário internacional e, na realidade, é o principal item de uma agenda de reformas necessária para proporcionar uma verdadeira mudança da ordem de poder mundial. E, muito menos, cita o inevitável recuo estratégico anglo-americano diante do visível fracasso das intervenções militares na Ásia Central e no Oriente Médio, que coloca em xeque a expansão da sua estratégia hegemônica baseada no controle de recursos naturais – diante da qual é bastante conveniente a opção de cooptar o Brasil como alternativa para o fornecimento desses recursos.
Nada de novo no front…
Assim, o CFR, ainda que aceite formalmente a realidade de um mundo multipolar, não abre mão da pretensão de perpetuar o esquema hegemônico baseado no sistema de “livre comércio” e no controle dos fluxos monetários e financeiros, que tem prevalecido desde a emergência e a consolidação da Inglaterra como poder colonial, no final do século XVII e início do XVIII. Sem uma reforma do sistema de bancos centrais “independentes”, que surgiu com a criação do Banco de Inglaterra, em 1694, e a devolução aos governos nacionais da prerrogativa de emissão da moeda e do crédito, em paralelo com uma drástica redução do financiamento dos Estados nacionais pela emissão de títulos de dívida, nenhuma proposta de reformas globais pode ser levada a sério, nem terá qualquer impacto duradouro sobre a estrutura de crises em curso.
Presente de grego…
Em vez disso, o relatório deixa claro que a oligarquia anglo-arnericana gostaria de enquadrar o Brasil no molde de um grande exportador de matérias-primas e uma “potência ambiental”, que abra mão da utilização plena dos seus recursos naturais para o desenvolvimento interno soberano do País e da América do Sul,pelo processo de integração regional. Neste particular, é relevante que, enquanto ignora a necessidade de um aprofundamento qualitativo e quantitativo da industrialização do País, o documento destaque o potencial de exportação de produtos primários – energia e alimentos – e a autoirnposição de uma draconiana legislação ambiental, que nenhum país industrializado adotou, a começar pelos próprios EUA. Tal tendência é explicitada no trecho a seguir:
«A floresta amazônica é, em si própria, um valioso recurso, que recicla dióxido de carbono para produzir mais de 20% do oxigênio do mundo.»
Entre as propostas de atuação conjunta, o documento sugere:
«Há um amplo escopo para que os EUA e o Brasil trabalhem juntos para melhorar as capacidades de modelagem e coleta de dados climáticos, particularmente na Região Amazônica … Esses esforços bilaterais ajudariam ainda mais a aprimorar as ambições brasileiras nas ciências e tecnologias espaciais, ao mesmo tempo em que enfrentariam o desmatamento e as mudanças climáticas e as relações entre eles.»
“Recuerdos” do México
Por outro lado, a oferta de promover o Brasil como “ator global” segue de perto o roteiro utilizado no final da década de 1980 e início da de 1990, para convencer o México a aderir ao Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), com a promessa de que o país se converteria em um membro destacado do “Primeiro Mundo” – e, ao mesmo tempo, um interlocutor preferencial com as demais nações da América Latina. O resultado desta pregação interna dos governos de Carlos Salinas de Gortari (1988-1994) e Ernesto Zedillo (1994-2000) foi a profunda crise que assola o México, que viu destruída a sua capacidade de produção de alimentos e enfrenta claros riscos de desintegração nacional. Ademais, nenhuma nação da America Latina aceitou a alardeada “liderança diplomática” do México, que passou a ser considerado como pouco mais do que um porta-voz de políticas estadunidenses, como se acaba de constatar com o rotundo fracasso da candidatura do presidente do Banco do México, Agustin Carstens, ao comando do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Para o Brasil não seria diferente:
«Com o Brasil como membro permanente do CSNU, o Brasil e os EUA, necessariamente, trabalhariam juntos em todos os desafios importantes nas áreas da segurança internacional, desenvolvimento e questões humanitárias, criando, potencialmente, as condições para uma relação e cooperação bilaterais mais estreitas em uma gama de assuntos ainda mais vasta, inclusive, dentro da região.»
Criando problemas
Ironicamente, o relatório do CFR enfatiza falsamente uma pretensa desconfiança das demais nações da América do Sul com o tamanho do Brasil:
«Ao mesmo tempo, a região se mostra, com frequência, relutante em aceitar o gigante de língua portuguesa como um dos seus. A crescente interdependência entre o Brasil e os seus vizinhos complica ainda mais as distinções e assimetrias, o que se reflete em relações simultaneamente caracterizadas pela ambivalência, indiferença, tensões e deferências … Alguns sul-americanos são cautelosos com o fato de que o Brasil, como um novo hegemon potencial com olhos no poder global, possa não ter consideração pelos interesses da região.»
Com isso, o que não passa de uma falsa suposição no atual ambiente de integração regional, passaria a ser efetivo, se se concretizasse o ingresso do Brasil no CSNU da maneira proposta pelo CFR – não por falta de mérito, mas pela inclusão do País em uma ordem hegemônica global vinculada ao “excepcionalismo” anglo-americano de caráter neocolonial. Neste ponto, a verdadeira emergência do Brasil como ator global passa, necessariamente, pela consolidação e aprofundamento do processo de integração da América do Sul, que deve avançar a um sistema de união aduaneira, para defender o enorme mercado interno regional dos embates depredadores do “livre comércio” globalizado.
Tentando obter aliados
Multipolar, mas só com “livre comércio” A iniciativa do CFR não é nem independente nem isolada, integrando um intenso debate que se trava no interior do establishment, sobre os rumos que a ordem mundial poderá tomar a partir da atual crise financeira e bancária mundial. Isto fica evidente pelo fato de, simultaneamente ao relatório do CFR, uma proposta semelhante vem sendo feita pelo establishment britânico, na linha de elevar o status brasileiro no CSNU. Por exemplo, em 21 e 22 de junho últimos, visitou Brasil o vice-premier britânico Nick Clegg, que transmitiu o recado de Londres:
«O Brasil é hoje uma força global, não apenas por sua riqueza. O país é uma potência arnbiental, sem a qual não pode haver um acordo climático significativo, e tem um papel cada vez maior na segurança internacionaL… Por esse motivo, o Reino Unido ativamente apóia a ambição brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.»
Neocolonialismo
No Rio de Janeiro, em uma visrta à favela do Morro dos Prazeres, um lapso verbal do empolgado Clegg evidenciou os antolhos coloniais usados por certos dignitários britânicos para vislumbrar o Brasil, ao afirmar que gostaria de ver os laços entre os dois países “voltarem ao século XIX, para recuperar as bases de uma relação mais sólida (Notícias Terra, 22/06/2011)” .
Em um contexto mais amplo, em 20 de julho, o vice-chanceler Jeremy Browne proferiu, na Chatham House, um discurso intitulado «Navegando na Nova Ordem Mundial: o Reino Unido e as Potências Emergentes». A entidade, formalmente conhecida como Real Instituto de Assuntos Internacionais (RIIA), é uma instituição basilar do Império Britânico, que desde a década de 1920, juntamente com o CFR (criado à sua imagem e semelhança), integra o núcleo duro do establishment anglo-americano. De fato, a criação deste núcleo marcou a culminação do processo de cooptação dos EUA aos desígnios imperiais britânicos, no âmbito do processo de reformulação do imperialismo clássico, nas primeiras décadas do século XX.
Pretensão inglesa
O discurso de Browne teve como objetivo responder à pergunta: como a Grã-Bretanha, como potência mundial consolidada, deve responder à ascensão das potências emergentes e à nova ordenação de poder mundial que elas estão ensejando?
A resposta proposta por ele envolve três proposições:
«Uma: estamos vivendo uma revolução na ordem global. E esta é uma revolução: eu uso a palavra deliberadamente, não só para provocar. Dois: a Grã-Bretanha não deveria temer automaticamente essa revolução, e tem muitas das qualidades e características necessárias para responder às oportunidades que ela oferece. Mas, de forma crucial, três: para sobreviver, ou melhor ainda, prosperar nesse ambiente revolucionário, a Grã-Bretanha precisa responder com um nível de imaginação e determinação proporcional em escala ao impacto dessa revolução.»
«A História está, estou certo disto, repleta de discursos de ministros do Foreign Office, anunciando que estamos vivendo um período de importantes mudanças globais. Assim sendo, não é sem alguma consideração prévia que faço estas afirmativas hoje. Eu as faço contra o pano de fundo de duas revoluções de proporções sísmicas, que estão ocorrendo no cenário, mundial. A primeira é a Primavera Árabe … Mas, ao lado dessas revoluções “clássicas” óbvias, há uma segunda, menos visível, mais lenta, mas igualmente – de fato, eu diria ainda mais – profunda: a revolução das potências emergentes, que não ocupa as manchetes diariamente.»
A lenga-lenga continua
A resposta de Browne a esse questionamento é bastante reveladora do que o establishment anglo-arnericano pretende preservar nas mudanças da ordem mundial:
«Nunca o mundo foi tão interconectado. E nunca ele esteve a ponto de se transformar em tão multipolar. A combinação dessas duas condições nos apresenta desafios inusitados. Mas também oferece oportunidades inusitadas … e uma vez que estamos em terreno não mapeado, é importante nos aferrarmos a certos princípios chave, os pontos cardeais da nossa política. São estes três que considero os mais fundamentais: primeiro, o livre comércio e a mentalidade orientada ao exterior que o embasa; segundo, os nossos valores e as liberdades mais amplas que fundamentam o livre comércio e as sociedades livres; e terceiro, os singulares pontos de venda da Grã-Breranha, que nos dão a chance de transformar essa revolução em nossa oportunidade.»
Para não deixar qualquer dúvida, Browne reafirma que «devemos assegurar-nos de não esquecer de que o livre comércio é central para a dinâmica que está reconfigurando a ordem mundial».
A insistência no laissez-faire
A insistência em colocar o sistema de “livre comércio” no núcleo a ser preservado dentro da reorganização da estrutura do poder global significa que as oligarquias hegemônicas que controlam o sistema financeiro mundial não estão dispostas a abrir caminho pacificamente ao advento de uma nova ordem substancialmente diferente do sistema que surgiu na consolidação da hegemonia mundial anglo-holandesa, ao final do século XVII. Vale recordar que, em uma espécie da pré-história do sistema de “livre comércio”, enquadrava-se a pirataria, uma guerra naval irregular, por meio da qual as potências coloniais emergentes, Holanda e Inglaterra, minaram o poder econômico e financeiro do Império espanhol. A paz de Utrecht, em 1713, marcou a vitória das potências protestantes, Holanda e Inglaterra, sobre sua rival católica, a Espanha dos Habsburgo. A partir daí, predominou a hegemonia inglesa, baseada no “livre comércio” e no domínio dos oceanos.
O Brasil tem que sair dessa
A pirataria foi a forma incipiente do sistema de “livre comércio”. mais tarde institucionalizado pelo sistema de bancos centrais “independentes”, a partir da criação do Banco da Inglaterra. Isto, e não simplesmente uma crise cíclica do capitalismo, é o que está no núcleo da presente crise mundial. É evidente que a própria maneira de pensar, isto é, os sistemas de conceituação predominantes, estão em profunda crise e, portanto, não está claro para as elites hegemônicas um rumo certo e definido. É esta crise que está permitindo a emergência de novos atores, entre eles o Brasil, que podem conduzir uma verdadeira revolução, para corrigir efetivamente os rumos da Civilização, fora das matrizes coloniais livrecambistas.
Portanto, não é o eventual reconhecimento das potências hegemônicas que poderá levar o Brasil e as outras potências emergentes à condição de protagonistas da reconstrução da Civilização universal. As nações devem estar conscientes de que uma nova realidade mundial está para surgir, na qual os valores inalienáveis do homem, como a vida, a liberdade e a busca da felicidade, como estabelecido na Declaração da Independência dos EUA, juntamente com os princípios do Estado nacional soberano, deverão ser as bússolas que orientarão o processo civilizatório ao longo do século XXI.
Lorenzo Carrasco
Solidariedade Ibero-americana
Fonte: blogdoambientalismo, postado por Husc
Imagem: google
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