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sábado, 8 de outubro de 2011

“Nada mostra mais o caráter de um homem do que aquilo de que ele ri”

Toda piada será castigada (?)

Quem leu O nome da rosa, de Umberto Eco, lembra-se de uma interessante discussão entre o protagonista do romance, o frade franciscano Guilherme de Baskerville, e Jorge de Burgos, monge bibliotecário do mosteiro beneditino onde se desenrola a maior parte da trama; discussão essa em que o tema central era nada menos que a natureza do riso. Seria o riso algo intrinsecamente bom ou maligno? O debate interessa em parte porque remete ao curioso clima de paranoia que imperava sob o obscurantismo medieval, quando crenças místico-religiosas tendiam a dominar e a limitar o livre exercício da razão e do próprio expressar-se individual ou coletivo. Naqueles tempos, a que alguns deram o controverso rótulo de “Idade das Trevas”, confrontar o dogmatismo religioso cristão com proposições mais objetivas, racionais ou científicas poderia simplesmente custar a vida de quem se atrevesse a tanto. Até porque questionar a fé era um dos maiores pecados em que então se poderia incorrer. E, na Baixa Idade Média, o fato era que os pecados estavam por toda parte, assombrando a mente de todos, de uma forma ou de outra. E era por medo de pecar que muitos tinham receio de rir.

Em sua obra, Eco tenta fazer uma reconstrução primorosa não só do cenário mas da mentalidade reinante no seio das ordens monásticas da Europa do século XIV, o que se vê refletido em especial na rígida postura do Irmão Jorge com relação ao mero ato de rir, sobretudo de assuntos sérios. Assim, enquanto Guilherme, representando uma corrente minoritária à época, tenta argumentar em defesa do riso, da comédia e do sentimento de alegre gozo diante da ironia e das sátiras literárias, afirmando inclusive que São Francisco, o fundador de sua ordem, muito prezava a alegria e o riso, do outro lado, Jorge de Burgos limita-se a bradar, com a voz autoritária dos que impõem sobre os outros suas certezas que se pretendem consenso: “o riso sacode o corpo, deforma as linhas do rosto, torna o homem semelhante ao macaco” (ECO, Umberto. O nome da rosa. São Paulo: Círculo do Livro, 1989, p. 139). Ao que ainda acrescenta: “da verdade e do bem não se ri. Eis por que Cristo não ria. O riso é incentivo à dúvida” (id., ibid., p. 140). De fato, este último ponto na tese do Irmão Jorge alude ao entendimento de que a pessoa que não vê problemas em rir do mal, aquele que consegue achar graça nas desgraças, não estaria realmente disposto a combater esses infortúnios e calamidades para dar-lhes fim.

Bem, embora tenha mudado muito o significado do que fosse o mal reprovável e combatível na cabeça de monges medievais e do que seja a noção (ou noções) hoje atribuída(s) à palavra, em particular sob influência de uma moderna filosofia humanista, de caráter consequencialista não radical e sobretudo ética nos pressupostos de que se pretende valer, alguns aspectos do debate sobre o riso ainda me parecem relevantes para uma reflexão. Nesse sentido, convém lembrar a pronta resposta de Guilherme de Baskerville à observação crítica de Jorge de Burgos: “Os macacos não riem”, ele replica, “o riso é próprio do homem, é sinal de sua racionalidade” (id., ibid., p. 139). Sinal de sua racionalidade. Sim. É importante destacar que, na obra de Umberto Eco, Frei Guilherme é declaradamente um discípulo de Roger Bacon (1214 – 1294), o notório frade franciscano que defendia com veemência o uso da razão baseada no método científico, que ele definia à época como se constituindo de um repetido ciclo de observação, hipótese, experimentação e necessidade de independente verificação. Por isso, Guilherme, na contramão do que pensava a maioria dos religiosos de então, comungava da ideia de que havia inúmeras coisas sobre as quais as Escrituras não lançavam luz e que, para estas, Deus dera aos homens a razão justamente a fim de que pudessem investigá-las, analisá-las de maneira crítica e rejeitar o que se demonstrasse descabido, valendo-se inclusive da ironia e do riso para fazê-lo. De fato, o frade afirma com todas as letras: “para minar a falsa autoridade duma proposição absurda que repugna a razão também o riso pode ser um instrumento justo” (id., ibid., p. 141).

O grande problema de tomarmos partido num debate de ideias, quer no universo diegético, quer no mundo real, é a tendência a nos fecharmos para os argumentos da outra parte, após escolhermos nosso lado. E o que quero dizer com isto, especificamente no que diz respeito esse “problema do riso”, é que, se de fato Guilherme de Baskerville está certo em salientar que este é próprio de nossa espécie — visto que apenas o animal humano é capaz de processar cognitivamente uma informação e reagir a ela com o instintivo impulso do riso —, não está de todo equivocado o Irmão Jorge quando insiste na possibilidade de que esse mesmo ato pudesse inspirar uma passividade condescendente em face de um mal repulsivo e condenável. E o fato de que ambos os pontos de vista, mutuamente antagônicos, possam ser sensatos em certa medida dá-se principalmente porque nenhum deles reflete uma verdade absoluta; são ambos relativamente verdadeiros.

O riso é, sim, um sinal da racionalidade do homem, como diz Guilherme de Baskerville em O nome da rosa, no sentido de que é por meio do processamento de dados em nossos módulos cognitivos, no que realizamos uma análise subtextual do discurso que nos é apresentado, que imagens mentais emergem em nossa consciência, de modo a fazer-nos achar engraçada uma frase do tipo: “Salário mínimo é que nem menstruação: vem uma vez por mês, dura 3 ou 4 dias e, se atrasar, deixa todo mundo louco.” A interpretação decorrente da racionalização acerca do enunciado é o gatilho da reação instintiva do riso de que nos vemos tomados de repente. Todavia, o riso puro e isolado, o riso em si, é o fator mais animalesco na equação comportamental do achar graça nisso ou naquilo — neste aspecto, o Irmão Jorge tinha razão. O riso per se é instintivo, é um impulso que nos move e que pode mesmo independer de interpretar enunciados ou imaginar situações. É por isso que recém-nascidos também riem. É por isso que mesmo bebês nascidos cegos e surdos também riem, assim, do nada. (Riem de quê?)

O riso é uma reação instintiva, natural, tal como a ira ou os ciúmes. Entretanto, assim como no caso destes, não devemos cair na falácia naturalista de concluir que tudo que é natural é bom. Cada instinto humano existe por razões evolutivas que foram vitais no ambiente ancestral, mas muitos deles constituem para o homem moderno, convivendo em sociedade, mais parte do problema do que da solução para os dilemas enfrentados neste novo cenário. São instintos, emoções e desejos que, dentro de nós, entram em conflito com valores e princípios (memes mais do que necessários) que racionalmente elaboramos e difundimos ao longo destes séculos e séculos de civilização, e que servem de contraestímulo aos nossos impulsos mais egoístas e nossas atitudes notadamente insensíveis para com a situação do outro com que convivemos. Aliás, é essa coexistência conflituosa do altruísmo e do egoísmo, do “bem” e do “mal” etc., nas mentes de cada pessoa, que nos torna nestes seres ambíguos, complexos, contraditórios.

O fato de que emoções e desejos antagônicos convivem dentro de nós pode até mesmo nos levar a achar graça de coisas que, de um ponto de vista moral, poderiam ser justificavelmente condenáveis. Algo que se torna bem evidente, por exemplo, quando vemos pessoas se divertindo e dando risadas, enquanto assistem a vídeos “incríveis”, gravados por cinegrafistas amadores, nos quais carros desgovernados atropelam velhinhos que cruzavam a rua, lançando a frágil vítima aos rodopios pelos ares, tal como um personagem de desenho animado. Aliás, os alemães há tempos já identificaram esse fenômeno humano a que chamaram Schadenfreude, isto é, esse sinistro sentimento de prazer (intenso ou sutil, a depender do indivíduo) que pode se manifestar em qualquer um de nós diante do triste azar ou da desgraça alheios. A verdade é que muitos podem “inocentemente” rir até mesmo de situações em que outros saíram gravemente feridas ou inclusive vieram a morrer — como no caso de alguns colegas meus, anti-imperialistas declarados, que deram mórbidas gargalhadas vendo replays dos aviões sequestrados por terroristas colidindo com as torres do World Trade Center, em 2001.

É preciso reconhecer um fato: o riso é parte daquilo que nos faz humanos. Por isso, não podemos (nem devemos) tentar separá-lo de nossa natureza, da mesma forma como não o podemos fazer com os humanos, demasiado humanos, sentimentos do amor ou da inveja. Além disso, uma sociedade em que o riso não seja não só permitido mas também estimulado pode ser qualquer coisa, menos democrática. E creio que nenhum de nós estaria afim de viver num lugar como esse. Mas não se conclui daí que, enquanto sociedade democrática de direito, deveríamos soltar a coleira desse instinto primitivo que nos faz gargalhar, abraçando um permissivismo humorístico que ultrapassasse qualquer limite ético imaginável. Não deveria ser assim por um simples detalhe: não parece justificável colocar nosso direito ao humor acima até mesmo do princípio da dignidade da pessoa humana, visto que é este o pilar principal que sustenta um estado democrático de direito, que é este o princípio máximo que garante a boa convivência social de primatas que evoluíram com uma gama enorme de instintos egoístas, de interesses acentuadamente individualistas.

A experiência social, o desenrolar da convivência humana num mesmo espaço ao longo dos tempos, é um fenômeno de imensa complexidade não por acaso. Essa experiência requer que encontremos um ponto de equilíbrio entre nossas condutas instintivamente impelidas (que vêm ao encontro desses interesses egoístas, bem como do natural “egoísmo” de nossos genes) e aquela conduta prescrita, que se impõe em favor da coesão social, da coexistência pacífica e mutuamente respeitosa (mas que colide frontalmente com aqueles mesmos instintos que trazemos do útero materno). O que muitos libertários ingênuos, defensores do vale-tudo na imprensa e nos programas humorísticos, parecem ignorar é que o custo da convivência social é a imposição de limites: nenhuma sociedade é possível, se qualquer indivíduo puder fazer ou dizer o que bem quiser, na hora em que bem quiser, onde bem quiser e contra quem quiser. No que diz respeito às nossas ações lesivas que atingem os outros fisicamente ou em seu patrimônio, o porquê de constituírem um sério problema para a pacífica convivência social é patente, objetivo, salta aos olhos de todos (como, por exemplo, nos casos de assassinatos, de estupros, de roubos etc.). Porém, no que se refere àquelas nossas condutas que atingem a integridade moral, subjetiva, psicológica, de outra pessoa, é incrível o número de indivíduos que insistem em não querer enxergar a existência do dano, que não querem reconhecer a existência de qualquer problema dessa natureza.

Piadas têm limites?
Recentemente, o assunto sobre até onde um humorista poderia ir no intento de “fazer graça” voltou a esquentar as redes sociais na internet. Humorista do programa CQC, exibido nas noites de segunda-feira, na rede Bandeirantes (“Band”), Rafael Bastos Hocsman, vulgo Rafinha Bastos, vem colecionando polêmicas com suas frases de efeito, com que visa a criar humor sempre apelando para o que se convencionou chamar discurso politicamente incorreto. Após ter dito, num dos stand-ups humorísticos que realiza Brasil afora, que “mulher feia” vítima de estupro deveria dar um abraço de agradecimento no estuprador por este lhe ter proporcionado algum sexo, e depois de ter xingado num episódio do CQC a apresentadora da Rede TV Daniela Albuquerque, fazendo gestos bruscos com o braço e dizendo que lhe daria uma “cotovelada” no nariz por não ter paciência para ensiná-la como se chamava o tipo de ringue de oito lados em que se enfrentam os lutadores de MMA — “Se fosse eu, já dava uma cotovelada: É octógono, cadela! Põe esse nariz no lugar” —, Rafinha apelou mais uma vez para o esforço grotesco de “fazer graça” ao comentar, noutro episódio do CQC, que a cantora Wanessa Camargo está tão bonita em sua gravidez que ele “comeria ela e o bebê”. A falta de limites para o humorista e suas baixarias ofensivas novamente dividiu opiniões, e, desta vez, até mesmo um seu colega de programa, o também humorista Marco Luque, classificou o comentário sobre Wanessa Camargo como “piada idiota e de muito mau gosto”. (Postura que, a propósito, fez os admiradores de Rafinha chamá-lo de “Judas”.)

Bem, a respeito do riso, há uma frase de Mark Twain (1835 – 1910) que faz bastante sentido, de certo ponto de vista, e que precisa ser lembrada: “A espécie humana tem apenas uma arma realmente efetiva, e esta é o riso”. De fato, o riso sempre foi e deve continuar sendo uma arma muito útil à crítica social, e como uma nossa reação para desestabilizar os prepotentes, os pretensos donos da verdade. No entanto, é sempre bom também salientar as palavras de Goethe (1749 – 1832), que sabiamente alertou: “Nada mostra mais o caráter de um homem do que aquilo de que ele ri”. Para muitos, isto pode soar como um grande exagero. Mas creio que para outros poucos, como eu, o escritor alemão foi muito feliz em sua colocação. E, não, eu não estou querendo dizer que quem riu da “piada” do Rafinha — inclusive escrevendo no Twitter coisas como “A Wanessa está mesmo tão gostosa que eu também comeria ela e a filha dela” (sem saber, aliás, que o bebê da cantora é um menino) — é com certeza um sujeito mau-caráter. Estou apenas argumentando que tal indivíduo parece não fundamentar uma ética pessoal num princípio de empatia, de sensibilização para com a condição ou os sentimentos do outro. Apenas isso.

Sim, eu também me irrito com algumas piadas de mineiros e faço piadinhas sobre paulistas, cariocas e também gaúchos como o Rafinha Bastos (aliás, já ouviram aquela de que gaúcho é tão macho, mas tão macho, que é macho até debaixo de outro macho?). Sim, eu também sou falho, também cometo meus pecados. Para citar um exemplo, ainda me lembro com clareza das várias vezes em que fiz piadas e dei risadas de um bêbado que havia na pequena cidade do leste de Minas Gerais onde vivi minha infância e adolescência. A provincianíssima Dom Cavati é cortada ao meio pela BR-116, e o bêbado a que me refiro vivia atravessando a pista com a mente desconectada da realidade por inspiração etílica. Por sorte, um grande quebra-molas no asfalto obrigava os veículos a reduzirem a velocidade, e os motoristas se limitavam a dar uma buzinada aos ouvidos do sujeito, sempre que ele se metia na frente deles, cambaleando de um lado para outro. A imagem daquele pobre miserável pulando de susto ao escutar as buzinas era nosso deleite, era a ração diária de nossa Schadenfreude. Até que um dia ele, no susto e num gesto difícil de explicar, agarrou-se à lateral do caminhão que havia acabado de buzinar e já ia passando ao seu lado, e, desequilibrando-se, acabou caindo diante das grandes rodas traseiras do veículo, sendo esmagado por elas. Aquele homem morreu com os intestinos estourados em cima da pista. E, ao contrário do que sempre acontecera antes, nunca ouvi ninguém se divertir com o relato desse dia fatídico em questão. O fato é que, por mais falhos que sejamos, por mais que gostemos de rir do que muitos condenariam moralmente, o limite da piada é a dor. E me refiro à dor alheia.

No entanto, dor não é apenas algo físico, a do sangue derramado, das tripas expostas. E é isso que os defensores do politicamente incorreto sem limites parecem não reconhecer ou reconhecem mas simplesmente não querem aceitar. É preciso não ter o mínimo de empatia para com as vítimas de estupro, com o inimaginável trauma psicológico que carregam após um crime tão repulsivo quanto esse, para que alguém ache engraçado o seguinte discurso: “Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho. Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade” (Rafinha Bastos). Da mesma forma, ver graça em piadas sobre doentes de câncer ou pessoas com defeitos físicos, com os quais o mesmo Rafinha costuma “fazer humor” em seus shows, implica notável falta de empatia para com aqueles que, não por vontade ou escolha sua, vieram a sofrer desses males. Por que ninguém que tenha um pai com câncer acha engraçado essas piadas? E por que qualquer pessoa, até mesmo os politicamente incorretos, conseguem entender tal reação por parte desse indivíduo em questão? Ao mesmo tempo, por que é que a relação com o sofrimento alheio tem de ser clara, óbvia e mais do que justificável apenas entre parentes, amigos ou amados? Por que é que eu ou você, leitor, que não temos uma irmã que foi estuprada, não precisaríamos tomar as dores psicológicas (sem esquecer que o estupro também é dor física) das “feias pra caralho” estupradas, que deveriam ser gratas pela chance rara de fazer sexo? Por que é que nós, somente porque não temos parentes ou outros entes queridos estuprados, com câncer, com deficiência física ou mental, vítimas de machões violentos que as chamem de “cadelas”, ou grávidas enquanto escutam alguém dizer que transaria com a mãe e com o bebê, enfim, por que é que nós, apenas porque não temos relação direta com ninguém que se encaixe nos perfis-alvos das piadas abusivas dos Rafinhas Bastos que atuam no mundo humorístico politicamente incorreto de hoje em dia, não deveríamos nos indignar com o que, afinal de contas, seria apenas o pleno exercício da liberdade de expressão?

Ora, quer saber? É engraçado ouvir os defensores do humor politicamente incorreto sem limites apelando veementemente para o argumento da liberdade de expressão, especialmente quando muitos — como o Marcelo Tas, por exemplo, que já defendeu as piadas grosseiras de Rafinha, seu colega de CQC, exatamente nesses termos — não estão dispostos a defender o mesmíssimo princípio da liberdade de expressão noutros contextos. O mencionado principal apresentador do CQC, para citar um exemplo, defende a liberdade de Rafinha expressar o que bem quiser em suas “piadas”, ofenda a quem ofender, ao passo em que chama de censura politicamente correta qualquer crítica ou condenação das baixarias de seu colega, mas não se furta a chamar de “vagabundos” um grupo de estudantes em protesto e funcionários em greve numa universidade pública, estumando a polícia militar para cima de todos, como pitbulls ensandecidos, a fim de resolver tudo na base do cassetete — sem levar em conta nem a legitimidade dos protestos e da greve nem a ilegalidade de uma ação da PM nesse campus universitário nas condições em questão, tal como bem salientou o Prof. Túlio Vianna (Direito/UFMG) em seu blog.

Com isso, chegamos a mais um aspecto bizarro desse debate sobre a liberdade de expressão dos humoristas politicamente incorretos: o fato de que muitos dos que agora pregam essa “liberdade plena” aparentemente o fazem para mascarar uma filiação político-ideológica mais à direita e mais favorável a um modelo de Estado truculento no trato com as manifestações sociais e as insurgências populares, e que se pretende mais liberal apenas no sentido americano da palavra — ou seja, misturando numa mesma panela noções de liberdades civis e de liberalismo econômico. Aliás, é curioso ver esses direitistas disfarçados de ativistas libertários, seja nas redes sociais, seja na imprensa, reivindicando com paixão a liberdade de expressão apenas quando convém ao seu joguinho de picuinhas politiqueiras contra a esquerda e, em especial, o governo do PT, o qual, por sua vez, reage com rompantes protoditatoriais, querendo fazer aprovar mecanismos de censura de não saudosas décadas passadas. E, nesse contexto, carta certa no jogo de manipulação da opinião pública por parte desses libertários de ocasião é a inevitável alusão à Primeira Emenda da Constituição dos EUA e a alegada liberdade irrestrita de expressão que garantiria aos americanos.

Embora a Primeira Emenda tenha de fato servido de fundamentação eficaz para a defesa em casos de réus processados por ofensas abusivas semelhantes às cometidas por Rafinha Bastos, é sempre curioso lembrar que ela não valeu de nada quando pessoas que escreviam ou falavam qualquer coisa vagamente associável ao comunismo tiveram vários direitos civis violados pelo Estado naquele país tão libertário, durante os anos sombrios do macarthismo. Além do mais, a verdade é que continuam sendo restrições expressas à mencionada emenda os casos de obscenidade e pornografia, que podem sim ser objeto de censura, lá na Grande Nação do Norte. E, por fim, cumpre lembrar que tanto a liberdade de expressão quanto a liberdade de imprensa nos EUA estão sim sujeitas a determinadas restrições como, por exemplo, a “defamation law” (lei da difamação), ainda que o tratamento jurídico e jurisprudencial da questão varie em conformidade com as diferentes leis de cada estado americano. Por outro lado, é preciso dizer que a lei americana é realmente muito mais permissiva do que as leis brasileiras ou europeias, por exemplo, no que diz respeito a calúnias, ofensas e danos morais. Mas realmente não sei como esse nível de permissividade pode ser sinal de uma “civilização mais evoluída”.

Para citar um exemplo clássico, a disputa em torno da notória paródia da revista Hustler contra o falecido Rev. Jerry Falwell é mais do que discutível. O caso, que ficou mundialmente famoso ao ser retratado no filme O povo contra Larry Flynt (1996), diz respeito à ação movida pelo famoso pastor televangelista contra a revista do polêmico Larry Flynt, cuja biografia o filme citado retrata. Para os que desconhecem os detalhes: numa edição da Hustler em 1983, foi publicada uma pseudoentrevista com o Rev. Falwell em que ele aparecia dizendo que sua primeira experiência sexual havia sido com a própria mãe, num banheiro externo da casa em que se criara, “enquanto ambos estávamos com nossos rabos tementes a Deus chapados de Campari”. O pastor processou a revista pela “brincadeira” ofensiva sobre sua relação com a mãe, que atingiam não apenas sua honra e imagem pública como também a honra de terceiro (a falecida mãe do pastor). Todavia, Flynt e a Hustler saíram vitoriosos dos tribunais porque a corte entendeu que o conteúdo da paródia estava protegido pela Primeira Emenda, enquanto as alegadas ofensas morais do pastor não tinham semelhante respaldo constitucional. Consideraram que as pessoas não levariam a história a sério (e decerto a maioria entenderia mesmo ser uma paródia), mas não sei se a coisa deveria ser analisada por aí.

Embora Jerry Falwell tenha sido mais um desses pastores fundamentalistas que vivem de explorar a credulidade alheia e que particularmente desprezo, estou do lado dele no que diz respeito a esse caso. Aliás, não só no Brasil, mas na maioria dos tribunais europeus, a Hustler decerto teria sido condenada. Afinal, embora mesmo a lei brasileira também permita que figuras públicas (como políticos, pastores televangelistas e celebridades midiáticas) sejam objeto de paródia e crítica ácida ou irônica, não podendo requerer danos morais em face dessas reações ao seu trabalho ou suas ações, por outro lado, poucos achariam aceitável (eu mesmo não o acharia), se, por exemplo, algum de nós, editores do Bule Voador, escrevesse um texto criticando o Pr. Silas Malafaia, dizendo coisas do tipo: “Ele já confessou que é um pedófilo e que curte transar com as próprias filhas desde que eram pequenas”. Se ninguém percebe que uma fronteira ética, moral e jurídica muito relevante teria sido cruzada num caso desses, se todos acham que isso é um tipo de sátira válida e engraçada, então eu realmente não sei para que servem conceitos como ética, dignidade, respeito etc.

Mas, enfim, toda piada agora será castigada?
Aqueles que alardeiam que a condenação de humoristas que “pegam pesado”, como o Rafinha Bastos, evidenciaria o império da hipocrisia politicamente correta e a existência de uma ditadura que quer acabar com a liberdade de expressão neste país precisam entender que nenhum direito, o que inclui a liberdade de expressão, é absoluto. Nem sequer nos EUA que tanto adoram citar, onde a famosa Primeira Emenda tem sim suas restrições, a despeito de sua ampla permissividade. Até porque o desenvolvimento da experiência social humana requer a reanálise daquele nosso “achar graça” mais instintivo, mais marcado pela Schadenfreude, aquela zombaria gratuita da desgraça ou da fragilidade alheia, enquanto, na medida do possível, em face de nossas tantas limitações e falhas (inclusive morais), buscamos aprender a ser mais empáticos, a nos colocar no lugar do outro, a partilhar de seu sofrimento, em vez de ridicularizar o sofrimento da pessoa a troco de algumas risadas tolas de quem nem sequer reconhece uma boa piada.

Isso porque uma coisa é uma piada politicamente incorreta dita numa rodinha de amigos que partilham de visão semelhante à do piadista de ocasião, outra coisa bem diferente é a mesma piada dita de forma difusa a toda a coletividade, através de um veículo de comunicação de massa, em meio a cujos espectadores pode haver quem se sinta profunda e diretamente atingido pela “zoaçãozinha nada de mais”. Sem falar que é um tanto contraditório e suspeito ver pessoas que defendem a liberdade de expressão para piadas machistas, homofóbicas, racistas e de conteúdos outros, sempre extremamente ofensivos, mas que são as mesmas que condenam protestos estudantis, greves de funcionários públicos, marchas pela legalização da maconha, paradas gays etc., inclusive manifestando o desejo de que o Estado acione seu braço policial ostensivo para coibir com violência essas manifestações constitucionalmente legítimas.

Por fim, parece escapar a grande parte das pessoas, sobretudo dos mais jovens, que o humor, o riso prazeroso diante do irônico, do satírico ou da comédia pura e simples, não depende de mandar todo mundo tomar naquele lugar ou de apelar para frases de efeito do tipo boçal-mastodôntico, nem significa desligar o sistema límbico e o córtex pré-frontal, de modo a se tornar um andróide insensível ao sofrimento alheio, incapaz de se colocar no lugar de uma traumatizada vítima de estupro ou de uma mãe grávida que preferiria não ter de ouvir coisas repugnantes sobre alguém querer transar com ela e com seu bebê. Portanto, não, nem toda piada deve ser castigada, condenada, criticada etc. Até porque, de Chaplin a Mr. Bean, de Mazzaropi aos Melhores do Mundo, ou aos stand-ups de um Pedro Cardoso ou de um Marcelo Adnet, o que não faltam são provas de que o humor, a graça, os risos incontroláveis nem dependem de palavras nem tampouco de apelação grotesca e gratuita, desse culto entusiasmado de nossos tempos ao neandertal interior. Culto esse a que se convencionou chamar humor politicamente incorreto.


Camilo Gomes Jr.
No Bule Voador

Fonte: Retirado do Blog cntextolivre.blogspot.com
Imagem: revista Veja

Um comentário:

Anônimo disse...

Gostei desta matéria ela nos faz pensar em uma série de coisas, sobre as piadas de mau gosto ditas de forma pública, a liberdade de expressão e o caráter de quem faz a piada. A arrogância é típica do ser humano, porém este moço - Rafinha Bastos - me parece pelo que aparenta ser, um sujeito com algum distúrbio psicológico, já que a sua mensagem de mau gosto tem um viés de pedofilia, talvez tenha sido por conta da sua criação judaica, pelo desprezo aos góins...não sei, isto somente ele pode dizer!!

José Carlos Pereira

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