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domingo, 17 de junho de 2012

Césare Battisti. Um terrorista?



“Boicotar minha imagem de escritor é uma maneira de me impedir de voltar à vida normal. É quase querer me empurrar a cometer o que eles venderam para o público: ‘esse cara é criminoso então vamos encorajar ele a cometer uma besteira’. Mas isso não vai acontecer”. Césare Battisti

Por Vanessa Silva

Em uma sexta-feira chuvosa, na zona sul de São Paulo, encontrei o ativista italiano Césare Battisti para realizarmos a entrevista agendada por e-mail alguns dias antes. O local escolhido foi uma lanchonete árabe: 10 da manhã. Mais ou menos pontualmente ele passou em frente ao local, mas não entrou. Engoli rapidamente os últimos pedaços da esfiha e esperei. Ele volta. Para. Olha para dentro por entre as mesas e sai novamente. Apresso-me a pagar o que consumi e saio. Avisto-o parado, na esquina, com ar perdido.

Não tive outra opção senão abordá-lo e me apresentar: “Césare, olá! Sou a Vanessa”. “Oi. Oi! Vamos lá!” Como que para justificar-se pela estranha reação, esclarece: “é que não fui eu que marquei, foi um amigo. Eu não conheço a região aqui”. Após trocarmos duas vezes de lugar, eu é que fiquei deslocada: também não conhecia a região. Por fim, achamos um restaurante apropriado e iniciamos a conversa.

“Não posso falar sobre política, nem sobre o meu processo na Itália. Isso já me rendeu muita complicação”, justificou-se. Feita a ressalva, iniciamos a entrevista.

O escritor

Battisti é escritor. Tem 20 obras publicadas, entre livros e histórias incluídas em coletâneas. A maior parte delas foi escrita em italiano, mas apenas quatro conseguiram circular em seu país natal. A maior receptividade aos seus escritos é observada na França, onde viveu 14 anos. Todos os seus livros foram traduzidos para o francês. Seus últimos três trabalhos foram publicados em português pela editora Martins Fontes: “Minha Fuga sem Fim”, “Ser Bambu” e o recém lançado “Ao pé do Muro”.

No prefácio de seu último livro, o professor titular da Unicamp e membro de Anistia Internacional, Carlos Alberto Lungarzo, esclarece que “a obra de Battisti é, também, uma luta contra o fetichismo. A nação é toda a Humanidade, e nenhuma pátria, mesmo ‘socialista’, pode substituí-la. Não existem anjos nem demônios, heróis nem bandidos, vítimas sagradas ou caçadores abençoados.

A repercussão do lançamento do seu livro no Brasil, no entanto, desagradou o italiano: “de repente, era como se tivessem concordado, ninguém [dos grandes jornais] apareceu. A gente sabia [que isso aconteceria] e por isso estamos fazendo um trabalho por canais alternativos, por uma imprensa mais militante e com apresentações em todos os Estados”.

Dois dias antes do lançamento, realizado na USP no dia 26 de abril, o jornal Folha de S. Paulo informou que o próprio autor havia cancelado o evento na Livraria da Vila. “Não é por acaso que é a Folha que faz isso. É um jornal cooptado pela Itália que me persegue há cinco anos, mentindo de maneira descarada, fazendo intoxicação, criando notícias falsas, como por exemplo, essa dizendo que a apresentação foi anulada em uma livraria onde nunca foi anunciada”.

Ainda assim o lançamento foi um sucesso: “estava cheio de gente, foi muito bom. [Tinha] estudantes, funcionários da USP, acadêmicos”.

“Ao Pé do Muro” foi lançado primeiramente na França, no dia 5 de março e “a Itália fez de tudo para boicotar este lançamento, de maneira histérica, querendo queimar livros”, conta Battisti.

O que ganha com o direito autoral a partir da venda dos livros no Brasil não é suficiente para que ele se mantenha, mas a divulgação de seus escritos tem outro objetivo: “não é através das vendas no Brasil que vou poder pagar meu aluguel. Mas é muito importante dar a conhecer a verdadeira cara de Césare Battisti. Que ele não é esse monstro que a mídia inventou, vendeu. Então é muito importante fazer esta turnê para combater esta imagem. Não é tanto pelas vendas do livro”.

E ressalta ainda que, “através disso [dos livros] eu vou poder desenvolver minhas ideias, minha maneira de pensar. [Lutar por] justiça e liberdade, pela igualdade e educação para todo mundo”.

Ativismo e militância na Itália

“Os anos 1970 foram um período de luta armada em quase todo o mundo. (...) Teve [luta armada] no Chile, Brasil, França, Itália, na Espanha, nos Estados Unidos com os Panteras Negras. Depois de 1968, se organizaram grupos no mundo inteiro, [até na] China”. Mas a Itália quer negar que existiu uma guerra, o que é “um absurdo porque nós temos [no país] dezenas de milhares de pessoas denunciadas, milhares presas. Ainda temos presos políticos na Itália. Hoje, 30, 40 anos depois ainda estão presos. Então, negar isso é um absurdo”.

De família comunista, Battisti entrou na militância ainda criança e aos 17 anos saiu de casa para participar de um grupo de jovens que vivia em uma “comunidade” de militantes não armados.

Ele classifica como o maior erro da sua vida ter entrado para o Proletários Armados Comunistas (PAC): “neste período, todo mundo achava que a via era a das armas. Claro que hoje eu acho que foi um erro, que tentar uma revolução armada em um país como a Itália é um absurdo. Acho que caímos em uma armadilha”.

Ele explica que a Itália tinha um forte movimento cultural “talvez o mais forte em quantidade e qualidade da Europa inteira depois da 2ª Guerra Mundial”. Então, para destruir esse movimento, os jovens foram “atraídos” para as armas, para o “enfrentamento direto com a polícia e com a repressão do Estado e claro que não tínhamos a menor possibilidade de ganhar deles. Foi uma armadilha”.

Tratava-se de uma “democracia de fachada. Na verdade, tínhamos a máfia no poder. Então acho que um jovem com 20 anos podia facilmente cair em uma armadilha dessas e recorrer à via das armas, ainda que eu ache que foi um erro político e estratégico”.

Proletários armados e a morte dos quatro

Battisti garante que não tem nenhum envolvimento nas mortes que foi acusado de ter cometido. Os fundamentos iniciais do Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) era de não matar. Mas a organização teve uma reviravolta quando, em junho de 1978, um grupo dentro dos PAC matou o guarda penitenciário Antonio Santoro. Neste momento, ele se decidiu definitivamente por sair, assim como boa parte dos fundadores da organização, conta.

“Esse homicídio foi executado quando eu ainda fazia parte dos PAC. Os outros três foram realizados quando eu já tinha saído. Isso não quer dizer que eu não fazia parte da luta armada, só que tinha saído desse agrupamento. Eu continuava em armas, mas em células de bairro, não nos PAC”.

“Eu assumo a responsabilidade política por esses anos todos coletivamente. Isso é história e a história não se julga nos tribunais”. Ele conta ainda que ninguém nunca o interrogou na Itália sobre esses crimes “nem um policial, nem um juiz, sobre esses assassinatos. Nada. Isso aconteceu depois. Depois da minha fuga da cadeia. Que foi uma fuga cinematográfica que a Itália não suportou uma coisa dessas. Então foi pura vingança”.

“Se queremos falar de vias jurídicas, de tribunais, então tem que respeitar também as leis. Eles não têm prova nenhuma de que eu participei disso. Nenhuma prova técnica. Pelo contrário. Têm provas de que eu não participei. As armas que foram usadas para matar essas pessoas foram encontradas com outras pessoas, que confessaram os crimes. É um absurdo! Tudo foi montado e fabricado de uma maneira imunda.

Por que então a perseguição?

O italiano de fala mansa não tem exatamente a imagem do que pensamos ser um terrorista. Tem semblante sereno, a barba feita, cabelo bem cortado. As lutas, perseguições, fugas e prisões, no entanto, deixaram sinais em seu semblante. Aos 57 anos, são visíveis as marcas da idade.

Mas, se é inocente como afirma, por que essa perseguição tão pessoal?, questiono. Battisti rebate prontamente elevando o até então tom calmo de sua fala: “essa é uma pergunta que eu faço aos jornalistas que me acusam publicamente. Por que eles mesmos não vão buscar a resposta para essas perguntas? (...) A grande imprensa que tem tantos recursos, deveria falar de ética profissional, colocar esta questão eles mesmos”.

Ele esclarece que o interesse por sua pessoa aflorou em 2002 quando passa a ter acesso à imprensa e a questionar o governo italiano. “Infelizmente eu virei uma personalidade pública, que tinha acesso à grande mídia e comecei a denunciar o que acontecia, o que tinha acontecido e ainda estava acontecendo na Itália. Por exemplo, eu queria saber onde estão os presos políticos, o que está acontecendo com eles. Essa foi a razão pela qual eu tive que fugir da França depois de 14 anos de asilo e vim para o Brasil. Se eu ficasse calado, se fosse qualquer um, que não tinha esse acesso à grande mídia para falar, denunciar essas coisas, estaria tudo bem, tranquilamente”.

Durante o tempo em que fui escritor, “que não vendia nada, ninguém se interessava por mim. Ninguém se ocupava de Césare Battisti. Eu estava a algumas centenas de quilômetros da Itália, estava em Paris. Por que nunca se ocuparam de mim? Por que começa isso em 2002? Porque é quando eu tenho acesso à grande mídia e começo a falar”.

Quando questionado sobre o porquê deste exato momento, ele esclarece: “porque teve um governo de direita na Itália, governo de direita na França... e eu fui vendido. Eu fui vendido em troca de um contrato. Isso saiu na imprensa. (...) A maior preocupação não era de que se estava vendendo a justiça, fazendo mercado com a Justiça”, mas se era conveniente para a Itália essa troca: “por que nós temos que aceitar o contrato com a França se podemos fazer nós mesmos? A preocupação do jornal [Corriere della Sera] não era que se estava vendendo a Justiça. Era a conveniência econômica, denuncia.

Battisti e o povo

“É mentira quando se fala que o povo italiano quer a minha cabeça. O povo italiano nem liga pra isso. Quem quer minha cabeça é a grande mídia e os políticos que estão no governo. O povo (...) tem outros problemas. A Itália está de joelhos, está em falência. (...) Sempre a máfia esteve no governo depois da guerra, mas nesses 16 anos eles tomaram todos os poderes. Desde a mídia, até o executivo. (...) Imagina então se o povo está preocupado comigo quando estão sendo fechadas milhares de empresas na Itália?”

No Brasil, em sua opinião, acontece a mesma coisa. “O povo não está contra mim nada. O povo brasileiro tem essa sabedoria [de saber] que a imprensa é poder e o povo brasileiro desconfia do poder, então nem liga. Eu nunca tive problema de relacionamento com as pessoas na rua”.

A receptividade é tamanha que “eu não consigo sequer pagar um café no lugar onde moro. Às vezes tenho até que passar longe porque sempre tenho que tomar uma cerveja, coisa e tal. (...) São muito receptivos. (...) Nunca tive problema de hostilidade. Tenho adversários políticos, claro. Sou honrado por ter adversários políticos, se [uma pessoa] não tem adversários políticos é porque não tem opinião.


Pior momento


Depois de 14 anos “deixar a França, minhas filhas, foi muito duro, muito difícil”, diz ao referir-se ao momento em que teve que fugir da França após o presidente Jacques Chirac ter concedido a extradição de Battisti à Itália em 2004. Neste momento, o italiano já era um escritor conhecido e a atitude de Chirac provocou reação da opinião pública francesa. Com a ajuda, supostamente, do serviço secreto francês, o ativista foge para o Brasil.

Ele conta, no entanto, que o pior momento desde que deixou a Itália foi o tempo decorrido entre a decisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em dezembro 2010, de não conceder sua extradição e a decisão final do Supremo Tribunal Federal (STF), em junho de 2011, que decidiu por sua libertação imediata:

“Quando o presidente Lula assinou a não extradição e eu fiquei um ano mais [preso] porque tinha uma vontade forte da direita daqui, (...) neste momento eu pensei que não tinha jeito. Se nem o presidente da República consegue fazer respeitar a Constituição, quem vai fazer respeitar? Então neste momento foi muito difícil para mim. (...) Quando se está sozinho em uma cela, tem momentos de desespero forte. Acho que este foi o momento mais duro, neste ano entre a assinatura de Lula e a última audiência do STF em que deliberaram a minha liberdade”.

“Ao Pé do Muro”

Battisti diz ter conhecido o Brasil por meio do relato dos presos com os quais conviveu durante o tempo em que esteve preso na carceragem federal de Brasília.

“Sem pieguice, o texto mostra a simpatia do autor pela humanidade daquelas pessoas empurradas a um mundo infernal onde, apesar de tudo, tentam manter sua dignidade. (...) Eles tratam o gringo com afeto, mas se apavoram com seus hábitos esquisitos: não gosta de baralho, novela ou futebol, usa caneta e óculos, e lê algo que não é a Bíblia. (...) Battisti se afina com a ingenuidade dos populares: eles não entendem como esse ‘gringo’ de olhar brincalhão e sorriso permanente, possa ser o Bin Laden italiano, o superterrorista difamado ad nausem (...). Seus colegas, que se consideram simples ‘bandidos’, não compreendem como um sujeito tão perigoso, que inspira tortuosas vinganças em tiras de três países, pode ser custodiado por apenas um policial”, escreve Lungarzo no prefácio do livro “Ao Pé do Muro”.

Battisti conta que o tema recorrente de sua “escrita é a identidade e as circunstâncias”, porque segundo ele, “ao contrário do que querem que a gente acredite, não é o homem que cria as circunstâncias, mas as circunstâncias que criam o homem. Você coloca a mesma pessoa em um bairro rico e em uma favela, essa pessoa não terá o mesmo destino. Não vai agir da mesma maneira. Então essas pessoas que estão presas são julgadas por alguns instantes da vida delas. Ninguém sabe de onde vêm o que são. Essas pessoas têm sentimentos, emoções, pensamentos e sonhos como qualquer um. Mas ninguém se pergunta isso aí. O tribunal não tem nem tempo, nem estrutura e tampouco se importa de saber quem são essas pessoas. E elas são seres humanos como qualquer um”.

No Brasil, Battisti foi colocado em contato com presos comuns e tratado como tal, não como preso político. Sobre a experiência, ele pontua que já ficou na “cadeia na Itália também, então eu sei o que quer dizer isso aí. Então eu não tive nenhuma dificuldade de lidar com esses presos. (...) Essas pessoas quando te falam, te falam de uma maneira... porque não têm nada mais a perder. E na cadeia, o cinismo, essa estrutura de defesa que precisamos na rua, lá não existe. Porque você está submetido a uma pressão tal que isso tudo aí não tem o menor sentido. Essa proteção que precisamos na rua não tem sentido nenhum, é outro tipo de proteção que se precisa lá. Então quando fala com alguém, fala de verdade. É por isso que eu aprendi a conhecer o Brasil sob a palavra dos presos.

Ele ainda ressalta que “a Europa deveria estar olhando muito mais para a alma da América Latina. A América Latina ainda tem um povo com alma, que não tem nada a ver com essa coisa de primeiro ou terceiro mundo! É outra coisa. Vai em outra direção. Tem outra maneira de pensar, de enxergar a vida. Então foi isso que aprendi nas prisões brasileiras e nas ruas estou constatando que é isso mesmo”.

Novos fronts

Sobre o espírito libertário do nosso tempo, Battisti considera que “tem gerações novas que estão surgindo, que estão lutando, querem lutar e enxergam as coisas de outro ângulo. Então é só a maneira de enxergar que mudou. Mas o espírito de luta para a conquista de liberdade, justiça e igualdade existe ainda. Só que hoje tem-se muito mais consciência sobre o fato de que não pode existir igualdade sem liberdade, que era uma coisa que nos nossos anos não estava muito claro”.

Hoje, Battisti faz oficinas de escrita pelo Brasil. Seu método é: “de um lado, onde tem dinheiro eu cobro, e devolvo [dá aula de graça] quando ninguém pode pagar. Na verdade, eu faço isso desde 1986, no México. Eu não preciso de muito dinheiro para viver. Não sou uma pessoa que vive no luxo. Preciso de poucas coisas. Não tenho e não quero carro. Então isso para mim é suficiente. Ter uma renda para ter uma vida digna. Nada mais”.




Fonte: Vermelho
Imagem: Google

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